Lars von Trier, Peter Greenaway e David Lynch constituem minha atual  Santíssima Trindade cinematográfica. Seus filmes me proporcionam a  inestimável sensação de novidade e descoberta, trazendo de volta a  excitante expectativa que me despertava a notícia do lançamento de um  novo filme de Fellini, Antonioni, Pasolini, Visconti, Truffaut, Chabrol,  Goddard, Bergman, nos remotos tempos de faculdade e cineclube. 
  Com tal estado de espírito fui à pré-estreia de Melancolia, o filme de Lars von Trier lançado no último Festival de Cannes.
 Em Melancolia, Trier nos apresenta sua versão do fim do mundo.  Antecedidas pelas soturnas, oníricas e memoráveis imagens de abertura  gravadas em extrema câmara lenta (como também no início de Anticristo) e  que se sucedem ao som do prelúdio de Tristão e Isolda de Wagner, a  história se divide em dois episódios, intitulados com o nome de duas  irmãs, Justine (Kirsten Dunst - Palma de Ouro de melhor atriz em Cannes)  e Claire (Charlotte Gainsbourg). O que une os dois episódios é a  crescente ameaça trazida pelo imenso planeta Melancolia, que parece  estar em rota de colisão com a Terra, o que provocaria uma hecatombe  definitiva. 
 No primeiro, seguimos o casamento de Justine, uma publicitária em  luta desesperada contra a depressão, cuja festa foi promovida pela  convencional irmã Claire e seu marido milionário. Que tudo vai dar mal é  anunciado pela visão da imensa limusine entalada nas curvas da estreita  e sinuosa estrada, impedida de levar os noivos ao castelo onde os  convidados os aguardam. O casamento, ritual amoroso de perpetuação da  espécie e celebração da vida, é destruído na própria festa. Os pais da  noiva se agridem publicamente e ridicularizam a cerimônia, a própria  Justine se comporta de forma inadequada e imprevisível. 
 A segunda parte se dá tempos depois do casamento. Justine, em forte  depressão, é acolhida pela irmã no castelo onde se realizara o casamento  e acompanha, inicialmente de forma distanciada e indiferente, a  angústia de Claire frente à ameaça cósmica trazida pela aproximação do  planeta Melancolia. Justine e o cunhado não levam a sério o medo de  Claire e tentam acalmá-la, convencendo-a que não ocorrerá a temida  colisão do planeta com a Terra. Os papéis agora estão invertidos. Se, no  primeiro episódio, Claire cuidava de Justine, agora é Justine que,  recuperada de seu quadro melancólico, passa a cuidar de Claire. 
 Melancolia é, sem dúvida, um grande filme, mas aquém de outras  criações de Trier como Anticristo, Manderlay, Dogville, Dançando no  Escuro e Os Idiotas - obras que aliam à inventividade formal uma trama  complexa, cheia de estimulantes enigmas a serem decifrados. Melancolia é  uma parábola transparente e linear, onde tudo está exposto diretamente.  Por isso mesmo talvez seja o filme onde o pessimismo desiludido do  diretor se expressa de forma mais radical. Ao contrário dos outros  filmes, nos quais a destrutividade e a loucura atingem apenas alguns  personagens, ínfima fração da humanidade, em Melancolia é a própria raça  humana que está em vias de extinção. 
 A melancolia é a forma mais profunda de depressão. É o quadro clínico  onde a pulsão de morte se manifesta de forma mais explícita. Nela,  dizia Freud, o superego é uma "pura cultura da pulsão de morte", pois se  apresenta com um rigor enlouquecido e sadicamente ataca o ego, que,  debilitado, não consegue reagir e se submete de forma masoquista ao  ataque. O resultado é o abandono da alegria de viver, o desejo de  autodestruição como disfarce do ódio e da violência dirigidos contra  tudo e todos. Tânatos induz à morte individual (suicídio ou homicídio)  ou em massa (guerras, genocídios, "limpezas étnicas", fanatismos  político-religiosos). Em casos menos extremados, provoca desastrosas  escolhas de vida, com consequências danosas para aquele que as fez e  para todos que com ele envolvidos.
 Assim, ao colocar o planeta Melancolia como ameaça à preservação da  vida na Terra, mais uma vez Trier está psicanaliticamente correto. O que  coloca a vida em perigo é a pulsão de morte, Tânatos, a destrutividade  que habita cada um de nós. Ela precisa ser mesclada com Eros, com a  libido, com o amor, o que a neutraliza e impede de produzir seus efeitos  anuladores da vida. 
 É interessante que Trier represente o poder letal da melancolia, ou  seja, da pulsão de morte, como algo que provém dos confins do espaço  sideral, uma ameaça cósmica externa, quando, pelo contrário, ele está  muito próximo, no íntimo de cada um. 
 Vale lembrar que Justine é a heroína de Sade, vítima de intenso  sadismo sexual por parte de seus algozes. Na Justine de Trier, a  violência sadomasoquista não mais se dá entre pessoas no mundo externo.  Está internalizada, parcialmente dessexualizada, encenada no palco de  seu psiquismo, no masoquismo moral com que se deixa torturar pelo  superego sádico. 
 É sabido que Trier padece de episódios melancólicos, quem sabe  decorrência de sua atribulada infância. Seus pais eram "nudistas e  comunistas", como disse em entrevistas, e achavam errado colocar  qualquer limite, restrição ou proibição para seus filhos. Em seu leito  de morte, a mãe lhe revelou que não era filho do homem falecido anos  antes e que até então considerara como pai, o judeu Trier. Seu  verdadeiro pai era Fritz Michael Hartmann, de família católica de origem  alemã, conhecida pelos vários membros que se tornaram renomados  músicos. Trier teve apenas quatro encontros com o pai biológico, após os  quais este se recusou a manter contato com o filho. Esta transmutação  de um pai judeu em um outro alemão, poderá ter sido o pano de fundo de  sua infeliz entrevista em Cannes, quando ironicamente se disse  "nazista", desencadeando uma onda de protestos a ponto de ser  considerado "persona non grata" do festival, acontecimento que abordei  anteriormente nesta coluna. De qualquer forma, podemos pensar que sua  atitude, que prejudicou seu filme e a si mesmo, é um exemplo da  autodestrutividade própria da melancolia.
 Mas o que importa é que Trier pôde transformar sua melancolia no  filme Melancolia, mostrando sua capacidade sublimatória, marca maior de  um grande artista. By Sérgio Telles - O Estado de S.Paulo
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