“Como recordar alguma coisa sem gostar de música?” Essa é a pergunta que faz um dos personagens de As canções, novo filme de Eduardo Coutinho, que está na disputa de melhor documentário no Festival do Rio. Recordando músicas que marcaram a vida de pessoas das mais diversas maneiras, Coutinho busca despertar as memórias guardadas, tristes ou felizes, com uma fórmula bem próxima do que já tinha realizado com maestria em Edifício Master (2000) e Jogo de cena (2007). O resultado é, novamente, uma obra-prima.
A música, em As canções, é simplesmente um dispositivo utilizado para se alcançar algo maior. As entrevistas de Coutinho são um trabalho praticamente psicanalítico, em que se intervém pouco, e se ouve muito. Os personagens estão ali dispostos a falar, a se expor, e o diretor está disposto a escutar. A construção é feita na montagem do filme, aonde, com diversos fragmentos de depoimentos reais, se monta uma só obra, um conjunto de realidades transformadas em uma só, a realidade do filme. O que se alcança, para além dos jogos de verdade/ ficção de Jogo de Cena, é uma força ímpar, baseada na identificação com as memórias tão íntimas dessas pessoas.
Em 'As canções' os personagens estão dispostos a falar e a expor suas histórias
A sensiblidade de Coutinho está em perceber, em nosso tempo, a necessidade de expor nossas vidas o tempo inteiro, seja através das redes sociais, vídeos de youtube ou no cinema. Os personagens de As canções se sentem menos expostos revelando sua intimidade através do filme (ou através do Orkut, como revela uma das entrevistadas), do que para seus familiares, seus amigos. Essa necessidade de transformar em público o que antes era privado se reflete também em uma plateia voyeur, que sente necessidade de assistir e participar da intimidade do outro, de conhecer os “bastidores” da vida do próximo. É um tempo em que a exposição pública se torna terapia, uma válvula de escape.
O diretor constrói o seu anti-American Idol, dando espaço para todas as pessoas cantarem suas músicas, as músicas de suas vidas. Aqui não há vencedor ou estrela, e sim pessoas comuns que, em um mundo que a cada dia as sufoca mais, sentem a necessidade de cantar para expurgar seus demônios, para terem essa oportunidade de falar o que precisa ser dito. É através desses fragmentos de intensidade enorme, que Eduardo Coutinho constrói uma espécie de unidade de um Brasil contemporâneo, de pessoas que sofrem terrivelmente, mas seguem cantando, buscando viver da maneira que podem. É assim que ele constrói um grande filme.
By Gabriel Medeiros - Jornal do Brasil
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